Para entender qualquer comportamento humano, diz o neurocientista e primatólogo americano Robert Sapolsky, 68, é preciso entender toda a cadeia de fatores que o influenciaram.
Ou seja, tem que levar em conta o que aconteceu horas antes, meses antes e mesmo décadas, séculos e milênios antes, quando a pessoa ainda estava na barriga de sua mãe ou quando seus ancestrais eram moldados pela história. Em nenhum ponto dessa trama interminável de causas seria possível falar em livre-arbítrio.
A ideia é o argumento central de “Determinados”, livro mais recente de Sapolsky, professor da Universidade Stanford, nos Estados Unidos. Na obra, ele defende que não é possível conciliar uma compreensão científica da natureza humana com a ideia de que somos capazes de controlar nossos atos por puro esforço de vontade.
Ele argumenta que a tentativa de usar ideias complicadas derivadas da física, como a mecânica quântica ou a teoria do caos, para pensar o livre-arbítrio equivale a acreditar em mágica, já que esses fatores também seguem leis naturais que independem da vontade individual.
Boa parte da sua argumentação neste novo livro já estava presente na sua obra anterior, chamada “Comporte-se”. Por que o sr. sentiu que precisava voltar ao tema?
De fato, quando escrevi “Comporte-se”, achei que tinha escrito “Determinados” ao mesmo tempo. Só que aí eu dei muitas palestras e passava uma hora com a plateia dizendo: “Nosso comportamento sempre deriva de fatores que nos afetaram um segundo atrás, um minuto atrás, meses atrás” e tudo o mais.
E invariavelmente, na hora das perguntas, alguém dizia: “Se tudo isso é mesmo verdade, esses dados sugerem que nós não temos lá muito livre-arbítrio”. E aí a minha reação era… [faz cara de inconformado] Puxa vida. OK, eu vou ter de ser menos sutil e escrever um livro inteiro sobre isso porque, afinal de contas, não existe livre-arbítrio. Tipo, nenhum, nenhum, nenhum.
Uma coisa curiosa do livro é o fato de que pessoas como neurocientistas e filósofos, que não deveriam ter um apego muito grande à ideia de livre-arbítrio, acabam defendendo o conceito com unhas e dentes. E isso mesmo depois de deixarem de lado as bases religiosas e metafísicas dessa ideia. Qual é a razão desse apego?
No caso dos neurocientistas, a maioria deles nem pensa no assunto porque eles só conseguem se concentrar no estudo de uma única enzima e de uma única parte do cérebro que tem sido o centro do universo deles durante décadas.
Já no caso dos filósofos profissionais, as pesquisas sugerem que entre 90% e 95% se identificam como compatibilistas. Ou seja, eles afirmam: “É, o mundo é feito de átomos, assim como nós e tal, mas de algum jeito aí ainda existe espaço para o livre-arbítrio”.
E, quando você olha com cuidado para os argumentos deles, sempre, em algum lugar lá dentro, eles enfiam algum elemento mágico para explicar isso. Mas não: o Universo, o cérebro, os neurônios não funcionam desse jeito.
Sobre a razão para tanta resistência, é porque essa ideia é perturbadora demais. A primeira reação é uma espécie de alarme cívico. “Ah, que ótimo, vamos deixar os assassinos soltos nas ruas” ou algo assim, o que é bobagem. É um tipo de alarme religioso.
Também há quem adote uma postura muito fatalista: “Você está dizendo que nada nunca vai mudar no mundo”, ou seja, nem adianta tentar. Quando você começa a escutar esse pessoal mais acadêmico para entender de onde vem a postura deles, percebe que, na maior parte dos casos, a visão é a seguinte: “Não venha me dizer que eu não mereço elogios pelo meu trabalho duro. Não venha me dizer que não foi por mérito que eu me matei para conseguir meus títulos e minha cátedra chique de professor Fulano de Tal”.
Então, parece ser um conforto para a classe dominante. Mas mesmo jogando fora tudo isso, lá no fundo ainda sobra o terror existencial de por que deveríamos nos importar com alguma coisa se somos só máquinas. É duro de enfrentar. É assustador, mexe com nossas intuições mais básicas. Seus privilégios passam a ser vistos como coisas que você não conquistou de verdade.
No livro, o sr. diz que até mesmo outros primatas parecem ter essa intuição instintiva de que o livre-arbítrio existe. Seria um jeito de pensar útil para a vida em sociedade, para saber quem é confiável e quem não é?
Com certeza. É algo que dá um atalho fácil e conveniente para entender os outros. Nessa lógica, indivíduos, como outros chimpanzés e outras pessoas, escolhem o que fazer. Então, como eu faço para interagir com esse indivíduo que não passa de um babaca? Eu o trato como se ele de fato quisesse fazer comigo o que costuma fazer, como se ele fosse um agente livre. É um atalho.
Poucos seres humanos estão dispostos a sentar e dizer: “Espere aí. Vamos tentar entender como aquela pessoa se tornou quem é e se ela realmente tinha algum controle sobre isso”. Certamente não dá para esperar que um chimpanzé ou um babuíno reflitam sobre isso.
Vemos outros pensadores usando elementos da ciência que não têm nada a ver diretamente com o comportamento humano, como a mecânica quântica e a teoria do caos, como possíveis bases para o livre-arbítrio. Por que eles buscam se apoiar nessas teorias complexas e distantes?
Se você não examina detidamente esse tipo de coisa, é fácil ficar com a impressão de que é possível produzir livre-arbítrio desse jeito, com coisas novas surgindo a partir do nada. E não é possível. As coisas não se libertam das suas propriedades físicas só porque um número muito grande delas está interagindo ao mesmo tempo.
Ideias como a teoria do caos e a complexidade emergente são tão bonitas, tão interessantes, permitem explicar fenômenos tão complicados como a otimização da trajetória das formigas ou a organização dos neurônios no cérebro, que é tentador usá-las para dizer: é assim que nos transformamos em agentes de nossas próprias escolhas.
Claro que isso é muito melhor do que dizer que o livre-arbítrio existe porque a gente é “capaz de senti-lo”, ou porque seria deprimente demais dizer que ele não existe. E é algo mais palatável para certos tipos de filósofos.
A compreensão que temos sobre a ação consciente muda alguma coisa? Em algum nível, tomar uma decisão consciente seria algo ‘mais livre’ do que reações inconscientes?
A consciência é irrelevante para o debate sobre o livre-arbítrio. Algumas das coisas que fazemos acontecem por meio de canais conscientes e outras por canais inconscientes. Com certeza é fácil perceber a falta de livre-arbítrio no primeiro caso, e só é preciso um pouco mais de esforço para perceber a mesma coisa no segundo.
Digamos que você tem uma intenção e está consciente dela. Você tem uma ideia bastante boa do que provavelmente vai acontecer se você seguir o que essa intenção dita e tem outras alternativas disponíveis. E, para muita gente, isso resolve a parada: trata-se de livre-arbítrio.
Mas se você apenas analisar o que acontece quando alguém formula uma intenção de agir, está deixando de lado 99% do que é relevante. Porque a verdadeira questão é: como você se tornou o tipo de pessoa que formularia aquela intenção naquele momento.
E essa é a história completa: não a de quem você é, mas a de como você se tornou quem você é. E isso tem a ver com o que aconteceu na sua infância, no útero da sua mãe, na cultura dos seus ancestrais ao longo de centenas de anos e assim por diante.
É raro ver um senso de humor como o seu em livros sobre ciência. É algo que aparece naturalmente quando o sr. está escrevendo? E já lhe causou algum problema?
Bem, não sei se é algo natural. Passei um tempo enorme da minha vida entre os babuínos, dando palestras para ele e testando algumas ideias para ver se eles eram fisgados, mas eles nunca me deram um “feedback” muito bom [risos].
Sabe, existe essa sensação de que, tudo bem, a gente precisa comunicar a ciência aos não cientistas e fazer com que eles percebam o valor do que fazemos. Mas, se alguém está passando muito tempo fazendo isso em vez de ficar com a cara enfiada nos tubos de ensaio, esse cara não está mais fazendo ciência séria.
Há um rebaixamento da sua legitimidade quando você começa a fazer isso. Não foi por isso que eu fechei meu laboratório uns 12 anos atrás, mas pelo menos fiquei livre desse tipo de coisa.
Perguntei isso porque, toda vez que leio uma nota de rodapé sua, a impressão é que o sr. estava se divertindo muito ao escrevê-la.
Bem, você deveria ver as que o editor cortou.
E qual foi a verdadeira razão para que o sr. abandonasse a pesquisa?
Ah, várias razões. Por motivos que não estavam sob o meu controle, meu trabalho de campo na África foi encerrado após 33 anos. Eu não tinha como começar de novo —precisaria ser 20 anos mais novo para ter energia suficiente para recomeçar do zero.
No laboratório, você sente falta da sua família e de ver seus filhos crescerem. Você se dá conta de que teve suas melhores ideias 20 ou 30 anos antes e que está cada vez mais difícil manter o ritmo.
E chegamos ao final de um experimento muito arriscado que durou nove anos, no qual apostamos tudo e dedicamos fundos de todo tipo de financiamento para ver se a nossa ideia funcionava, porque, se desse certo, transformaria toda a neurologia.
A ideia era usar terapia gênica logo depois de AVCs, usando elementos da resposta das células ao estresse. E finalmente tivemos a resposta. A ideia funcionou. Só que funcionou com um milésimo da potência necessária.
Puxa vida.
Conseguimos salvar uns 50 neurônios depois de atacar com tudo o que tínhamos. Tipo, volte a falar comigo quando vocês chegarem na casa dos 500 mil neurônios. Acabei tendo de fazer uma decisão muito intuitiva sobre que tipo de célula inflamatória deveríamos modificar geneticamente e provavelmente escolhi o tipo errado.
Se você conhece cientistas, sabe que o laboratório é um dos centros do nosso universo, e não ter mais um laboratório é uma mudança grande, mas foi muito bom ter feito essa mudança.
Raio-X | Robert Morris Sapolsky, 68
Professor da Universidade Stanford, fez graduação em bioantropologia em Harvard e doutorado em neuroendocrinologia na Universidade Rockefeller, ambas nos EUA. Além de “Determinados”, é autor de “Memórias de Um Primata” (2004), “Por Que As Zebras Não Têm Úlceras” (2008) e “Comporte-Se” (2021).