O físico Ernesto Mané, 42, conta que, depois de um doutorado no Reino Unido e de iniciar sua pesquisa de pós-doutorado no Canadá, sentiu que alguma coisa simplesmente não estava se encaixando. “O que eu pensei era o seguinte: tudo bem, eu entendi tudo isso aí —mecânica quântica, teoria da relatividade, física nuclear. Mas e eu, de onde eu vim?”, recorda ele.

“Quer dizer, eu estudei a matéria nas suas bases constituintes mais fundamentais. Fiz experimentos sofisticados. Mas eu não sabia quem eram meus avós. Falava várias línguas europeias e não conseguia falar a língua dos meus avós.”

Em “Antes do Início”, seu livro de estreia, Mané, hoje diplomata, narra como tentou superar essa lacuna, bem como uma história familiar complexa e dolorosa espalhada por três continentes, ao visitar a terra de seus antepassados paternos, a Guiné-Bissau, na costa oeste africana.

Foi dessa ex-colônia portuguesa que o pai do pesquisador —também chamado Ernesto Mané— veio para o Brasil como bolsista para estudar economia e se casou com a mãe dele, de família paraibana. O autor acabaria crescendo em João Pessoa, onde fez a graduação em física pela UFPB.

O pai de Mané, porém, tinha deixado outras duas famílias para trás, gerando filhos com outras mulheres tanto na Guiné-Bissau quanto em Cabo Verde, e seu casamento brasileiro tampouco durou, de forma que ele passou a ter pouco contato com Ernesto e sua irmã quando ambos ainda eram pequenos.

O afastamento paterno, a falta de contato com os parentes do outro lado do Atlântico e o fato de que o lado materno da família do futuro físico era formado por brancos foram se tornando um peso para ele conforme crescia. E Mané também experimentou o preconceito por sua origem africana tanto no Brasil quanto no meio acadêmico europeu e americano.

“Na Inglaterra [na Universidade de Manchester, onde fez o doutorado], não faziam muita questão de esconder de que eu estava indo para lá meio que para ser civilizado por eles, sabe?”, resume.

Durante o pós-doutorado em Vancouver, no Canadá, Mané enfim pôde visitar a terra dos avós paternos. Desembarcou na Guiné-Bissau em dezembro de 2010 e passou ali as festas de fim de ano. As anotações que fez na época acabaram se transformando no núcleo de sua narrativa autobiográfica, a busca por aquilo que o autor, à maneira dos físicos, chama de seu “t = 0” —o tempo que precedeu o seu início.

O carinho dos parentes guineenses e o fascínio pela história familiar se misturou ao choque cultural e aos graves problemas econômicos e de infraestrutura no país da África Ocidental.

Mané descobriu que muita gente ali o encarava como branco ou, no mínimo, oriundo da chamada “tera branku” —”terra dos brancos” no crioulo guineense, um idioma híbrido gerado pelo contato entre o português e as diferentes línguas africanas da pequena nação, com vocabulário europeizado, mas estrutura nativa.

Ao mesmo tempo, ele também foi percebendo que aquilo que via como um semi-abandono paterno também tinha um reflexo na visão negativa da família guineense sobre seu pai —nas tradições patriarcais da etnia paterna, a dos balantas, cabia a filhos mais velhos, como o genitor do físico, o cuidado com os idosos e outros parentes necessitados. Segundo os que tinham ficado na Guiné-Bissau, o pai de Mané tinha deixado essa responsabilidade de lado.

O “diário de viagem” do autor registra a raiva e o pesar dos parentes, bem como a visão mais amarga que ele desenvolve em relação ao pai, com honestidade e crueza.

“É como disse certa vez o James Baldwin: ele precisava vomitar o que o fizeram engolir durante a vida toda. Para mim foi um processo meio catártico, um acerto de contas ao colocar para fora essas questões”, explica. “Mas é claro que a gente vai amadurecendo. O texto passou por um processo de edição, no qual muita coisa foi cortada, e eu não sou mais o Ernesto que eu era em 2010.”

Mané também queria compreender como o mesmo pai que tinha cuidado dele o tempo todo até os cinco anos de idade —um arranjo que se tornara possível porque, enquanto a mãe do autor trabalhava fora, o pai, fazendo mestrado, tinha mais tempo de ficar com ele— de repente sumira da vida dele, assim como deixara de lado suas outras famílias.

As conversas em Guiné-Bissau trouxeram algumas pistas. Além da presença relativamente alta de uniões poligâmicas na cultura paterna, a situação política do fim da colonização portuguesa no país também colocou seu pai sob risco se permanecesse na terra natal, já que ele havia sido soldado das forças coloniais e, portanto, poderia ser malquisto por integrantes do novo regime.

Processos como esse, junto com as dificuldades econômicas dos novos Estados africanos, criaram muitas famílias cindidas com membros no Brasil, em Portugal e no continente de origem, a exemplo da própria parentela do autor.

Mané hoje consegue entender e usar o idioma crioulo um pouco melhor e fez questão de dar aos filhos (dois meninos, de dez e seis anos) nomes típicos dos balantas.

Ao se tornar diplomata em 2014, beneficiado por um programa que incentiva negros a integrar o Itamaraty, o físico enxergava tanto a necessidade de estreitar os laços do Brasil com a África quanto de pensar a ciência brasileira num contexto de cooperação internacional e soberania.

“A produção científica também tem uma divisão internacional. Você tem os grandes centros de pesquisa, as grandes universidades, com grupos que estão, digamos, tentando responder as grandes questões. E, infelizmente, para os países periféricos, é difícil a gente conseguir penetrar nesse mundo”, analisa ele.

“Acho que, no caso brasileiro, a gente precisaria fazer uma grande reflexão sobre a produção científica necessária para responder às grandes questões do Brasil, da nossa sociedade.”

Embora continue considerando a ciência sua grande paixão, ele diz que o contato com o mundo paterno na África o ajudou a enxergar o conhecimento científico de forma menos absoluta e a valorizar as contribuições de outras regiões do mundo para a compreensão dos fenômenos.

“Se você for estudar as coisas num nível um pouquinho mais profundo, você vai ver que, mesmo na mais alta ciência ocidental, também há vários dogmas, coisas que são muito específicas daquela sociedade, naquele tempo histórico. A gente está agora no centenário da mecânica quântica, um pilar da física moderna, super bem estabelecido. Mas eu desafio qualquer físico a explicar de uma maneira simples do que ela realmente trata.”

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