“Tá tão difícil ser juiz que toda hora tem uma coisa a mais? Parece até ‘gamificação’. Se passar uma fase, ganho uma coisa. Se eu fizer audiência, ganho uma coisa. Se der sentença, uma coisa. Somos servidores. Servimos à sociedade. Parece que o exercício da magistratura hoje é doloroso. Tudo é difícil. Temos que ser bem remunerados, mas quem tá ganhando mal? A pergunta é essa.”

Luiz Philippe Vieira de Mello, presidente do TST, desafiou magistrados obsessivos com demandas remuneratórias a explicar se alguém ali ganhava mal. Porque mais desonesto que criar gratificações ilegais é justificar a ilegalidade afirmando que “juiz deve ganhar bem”. Como se já não ganhasse.

A magistocracia não se importa em criar adicionais para remunerar tarefas que já estavam incluídas no salário. Como cirurgião pedindo adicional por anestesia e chef de cozinha por temperar o prato. Como se advogado do Estado devesse ganhar adicional para defender o Estado (ops, ele passou a acumular honorários além do salário); ou defensor público para fazer audiência (ops, melhor não contar).

O promotor paulista Jairo de Luca, aposentado, chocou o país ao recusar R$ 1,3 milhão de benefício destinado a 1.900 promotores (reportagem de Wesley Galzo, em O Estado de S. Paulo). O depósito foi legalizado magistocraticamente, se você me entende. Correspondia a “compensação por assunção de acervo”. A “compensação por assunção” não foi proibida pela língua portuguesa, mas pela lei. Parolagem de Augusto Aras no CNMP a inventou.

Jairo talvez tenha praticado o maior gesto individual anti-grilagem magistocrática da história brasileira. Simboliza grito de alguém que conseguiu transformar desconforto de consciência em gesto concreto. Não é para qualquer um.

Jairo deu exemplo do que a filosofia moral chama de ato super-rogatório, imposto por ninguém exceto a consciência. Virtude praticada sem ser solicitada, sem ser exigível. Vai além da obrigação razoável. Não sabemos quantos cristãos brasileiros fariam o mesmo gesto, quantos levam o bom samaritano a sério.

Houve outros. Anos atrás, o juiz gaúcho Celso Fernando Karsburg abriu mão de mais de R$ 200 mil em auxílio-moradia agraciado por liminar de Luiz Fux ao longo de cinco anos. “Acho que estou mais sintonizado com os novos tempos —eu e mais juízes que renunciaram”. Entendeu ser “maneira incorreta de repor perdas salariais”. O juiz maranhense Carlos Roberto Oliveira Paula, “incomodado com as justas críticas da população”, pediu para interromper o mesmo auxílio.

Há também os orgulhosos da própria malícia. O juiz aposentado Marcelo Bretas, dono de apartamento compartilhado com sua esposa juíza, pediu auxílio em dobro para o casal: “Pois é, tenho esse ‘estranho’ hábito. Sempre que penso ter direito a algo vou à Justiça”. Wilson Witzel, juiz antes de virar governador cassado do Rio de Janeiro, ensinava a concurseiros macetes espertos para conquistar benefícios.

O ethos grileiro defende enriquecimento ilícito com recurso público. Tudo legalizado. Magistocraticamente.

Não se constroem instituições esperando de cada membro o grau de coragem e retidão que tiveram Jairo, Celso e Carlos Roberto. Mas não há instituição cuja legitimidade sobreviva ao parasitismo magistocrático.

Por isso vale homenagear a integridade onde ela apareça. E exigir controle da descompostura, do descalabro, da desfaçatez argumentativa e financeira.


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