[RESUMO] Em entrevista à Folha, a professora de ciência política da USP Marta Arretche afirma que a disputa em torno da trama golpista não acaba com a condenação de Jair Bolsonaro pelo STF e defende que a corte, que tomou protagonismo diante da polarização do país, precisa rever o método de decisões monocráticas.

Não é possível considerar a condenação de Jair Bolsonaro (PL) pelo STF (Supremo Tribunal Federal), decisão histórica na democracia brasileira, como o capítulo final da trama golpista ou da vida política do ex-presidente, afirma Marta Arretche, professora do Departamento de Ciência Política da USP e pesquisadora do Centro de Estudos da Metrópole.

Em entrevista à Folha, Arretche diz ver chance de reversão da decisão pelo próprio Supremo ou pela via política, diante da pressão por uma anistia.

A pesquisadora avalia que a opinião pública, hoje majoritariamente contra a supressão de penas aos condenados, é volátil e capaz de aceitar um eventual perdão caso a situação de saúde de Bolsonaro se deteriore, por exemplo.

Arretche ainda elenca a necessidade de reformas no modelo de decisão da Suprema Corte brasileira para evitar determinações monocráticas e afirma que as emendas parlamentares impositivas vieram para ficar.

O ex-presidente Jair Bolsonaro foi condenado pelo STF pela trama golpista. Ao mesmo tempo, o Congresso articula uma reação por anistia, ainda decidindo a extensão dessa supressão de penas. Como a sra. avalia esse julgamento para a democracia brasileira e o pacto firmado pela Constituição de 1988?

O primeiro ponto que me parece importante é que esse julgamento não é apenas o julgamento de Bolsonaro. É o julgamento de membros da elite do Exército brasileiro que participaram ativamente de uma trama golpista, algo que não é novidade na história —aconteceu repetidamente ao longo do século 20. O fato de você ter tanto um ex-presidente quanto uma parte da elite militar condenados é um evento histórico em si só na história da luta pela democracia no Brasil.

Mas o julgamento não é o último episódio da série. Por duas razões importantes: a primeira delas é que o passado recente nos mostra que a hipótese de que a decisão desse julgamento seja revista por um membro do STF em um futuro não muito distante não está descartada. Dias Toffoli tomou decisões monocráticas que reverteram decisões do próprio tribunal com relação a Lava Jato. O voto do ministro Luiz Fux parece abrir espaço para esse caminho.

A segunda razão importante é que esse movimento golpista não é um movimento isolado no plano político. Ele conta com o apoio do PL, partido que era o maior na Câmara dos Deputados. Ele conta com Silas Malafaia, uma liderança evangélica muito importante. Conta com o apoio de governadores importantes. Alguns deles já prometeram que o seu primeiro ato será um indulto aos condenados, o que pode criar um novo episódio de crise política.

Segundo o Datafolha, em pesquisa antes do julgamento, 74% afirmam preferir o regime democrático. Depois da sentença, como a sra. vê o reposicionamento das forças políticas?

A opinião pública pode mudar. Na verdade, tanto Bolsonaro quanto a extrema direita no Brasil revelaram uma altíssima capacidade de criar episódios de vitimização que mudam a opinião pública. Vamos imaginar um cenário que não seria de descartar. Suponha que Bolsonaro seja preso em regime fechado e que ele tenha sucessivos problemas de saúde. Ele sai da prisão, volta para a prisão, vai para o hospital… Não é de se descartar que isso gere um movimento em favor de um eventual indulto e não é de se descartar que Bolsonaro, que de fato tem problemas de saúde, explore esse fato.

A opinião pública é importante, claro que é, porque os atores políticos estão sempre conciliando interesses não tão públicos com a opinião pública, mas nós não podemos supor que ela seja uma condição necessária ou suficiente para explicar as estratégias dos atores políticos.

Por outro lado, a liderança política do PL e parte da liderança política do centrão parecem ter perdido a medida da desfaçatez. A tentativa de aprovação da PEC da Blindagem e da lei da anistia revelaram que há um limite para ignorar a opinião pública. Quem de nós imaginaria no início de setembro que Sóstenes Cavalcanti, Malafaia e Eduardo Bolsonaro errariam tanto a ponto de provocar as manifestações de 20 de setembro? Perderam o monopólio da bandeira brasileira, do boné e da indignação.

De todo modo, as manifestações de 20 de setembro nos dão uma ideia do que poderia ter acontecido no Brasil caso a tentativa de golpe de Bolsonaro tivesse prosperado.

Temas como a anistia podem se tornar palatáveis ao eleitor em algum momento?

Até a semana passada, as evidências diziam que o tema não mobilizava parte expressiva do eleitorado. Entre os informados, a maioria contrária à anistia não era assim tão expressiva. O fato, contudo, é que a liderança do PL e do centrão conseguiu mobilizar uma forte reação à proposta de anistia total e irrestrita. Após as manifestações de 20 de setembro, o custo político de aprovar a anistia tornou-se muito alto.

O Supremo tem sido altamente criticado pela forma como tem atuado, especialmente em relação a Alexandre de Moraes. Como a atuação da corte aumenta ou diminui a quantidade de tensões diante do regime democrático brasileiro e em meio à profunda polarização na sociedade?

O primeiro ponto com relação ao Supremo é que as regras decisórias do sistema político brasileiro tendem a sobrecarregar o tribunal. Não existe tema relevante da sociedade brasileira hoje em que um perdedor no Executivo ou no Legislativo não recorra para o Supremo. O Judiciário não é uma arena de negociação. Ou você ganha ou você perde, e as decisões do Supremo são interpretadas como partidarizadas, porque a Corte tem que arbitrar em favor de algum lado. Como nós temos inúmeros pontos de tensão na agenda política brasileira, isso tende a colocar o tribunal no meio das decisões.

O segundo ponto é que o Supremo acabou deliberando por métodos de decisão monocráticos, que em si já seriam altamente controversos e polarizados, mesmo entre aqueles que concordam com as decisões do tribunal.

O primeiro aspecto está fora da decisão do Supremo em mexer. Mas seria de todo conveniente que o Supremo revisse os seus métodos de decisão de modo a aumentar a credibilidade.

A sra. acredita que esses métodos de decisão são apenas controversos ou já chegam a ser uma expansão de Poderes ou antidemocráticos?

A ampla área de jurisdição do Supremo é resultado da Constituição e do fato de que os perdedores do Executivo e do Legislativo acabam jogando a decisão para o colo do STF, como a Constituição permite. O Supremo acaba tendo que decidir. Poderia não decidir, deixar enterrado lá, mas existe uma pressão do sistema político que joga para o Supremo uma decisão. Agora, o fato de ministros tomarem decisões tão importantes monocraticamente levanta objeções sobre o método da decisão.

Hoje, há uma parte da opinião pública no país favorável às decisões que o Supremo vem tomando, mas veem com reservas o modo como as decisões são tomadas. É isso que a extrema direita explora: eles dizem que existe uma ditadura do Supremo no Brasil e elencam um conjunto de decisões que foram tomadas monocraticamente. Isso não se aplica ao caso do julgamento dos golpistas, porque houve o devido processo legal, há provas, há o direito à defesa, tem um conjunto de evidências robustas.

Há a proposta de emenda à Constituição obrigando o Supremo a não tomar decisões monocráticas em certas circunstâncias, que Arthur Lira vinha tentando emplacar. Seria uma saída adequada o Legislativo limitar o Supremo sem a opinião do tribunal?

Acho que o Legislativo deliberar sobre o regimento do Supremo certamente criaria mais uma crise institucional. O ideal seria que a própria corte revisse o método de tomar decisões, até porque a decisão monocrática faz com que uma parte da opinião pública, que legitimamente questiona esse procedimento, acabe dizendo que a extrema direita tem razão quando ela está criticando esse tipo de método.

Do ponto de vista da legitimidade de uma decisão, um indivíduo que não recebeu mandato poder, sozinho, rever uma decisão de um colegiado que foi eleito é de difícil justificação.

Estamos vendo, cada vez mais, a judicialização de temas políticos. Como ver a relação da Suprema Corte com as emendas parlamentares, que também estão sendo disciplinadas por decisões do tribunal?

Uma parte da discussão das emendas decorre do fato de serem impositivas e de o Executivo ter perdido um instrumento com que ele contava para obter apoio no Congresso. Essa é uma mudança que enfraqueceu o Executivo, não apenas o presidente Lula (PT). O gênio saiu da garrafa e colocá-lo de volta não será tarefa tão simples.

A impositividade das emendas afeta a governabilidade, mas tem uma outra dimensão do problema das emendas: elas não são transparentes. Isso não é apenas um problema do Executivo com o Legislativo. Isso diz respeito aos interesses que estão por trás dessas emendas. Por que um deputado não quer que se saiba que ele é o autor das emendas? O que a teoria prevê é que um deputado autor de uma emenda vai para o seu eleitorado e diz: “Fui eu que trouxe esse benefício para você e eu quero o crédito político”.

A intervenção do Supremo nas emendas não tem o efeito de recuperar os recursos do Executivo para lidar com o Legislativo. Pessoalmente, acho que não há retorno ao status anterior. Mas ela busca dar transparência ao uso da verba.

O Supremo foi chamado a deliberar sobre isso, está empenhado em recuperar o mínimo de controle público do uso dessas emendas, mas, de novo, por métodos que podem gerar controvérsia. O fato é que essas duas coisas combinadas geraram uma coalizão no Congresso que junta os defensores da anistia com os defensores das emendas, contra o Supremo.

Essa coalizão se tornou muito poderosa, porque é numerosa, muito ativa e opera com um presidente da Câmara que se revelou muito fraco. A PEC da Blindagem e a anistia resultam dessa coalizão que reúne os bolsonaristas com os defensores da emendas parlamentares, ambos os grupos ameaçados pela ação do STF.

Lula tem tido um mandato com indicadores sociais positivos aumento da renda, diminuição da desigualdade, índice de ocupação alto, o país ter saído do mapa da fome—, mas isso não se traduz em dividendo eleitoral ou avaliação do seu governo. Por quê?

A interpretação tradicional da ciência política com relação à aprovação de quem está no Executivo foi tradicionalmente pautada pela lógica do voto econômico. Se a economia vai bem, as taxas de aprovação vão bem. Essa interpretação vem sendo questionada pelos estudos que tentam explicar a polarização.

Uma explicação possível é o que chamamos de mobilização afetiva e, mais especialmente, a mobilização afetiva negativa. A aprovação de um presidente é afetada pela escolha partidária ou pela relação afetiva que você tem com esse candidato ou com esse partido. Se você votou no Lula em 2022, você vai aprovar o que o Lula faz. Se você não votou no Lula, você não vai aprovar o que o Lula faz.

Como a teoria tradicional via? Aprovo um presidente, voto nele. A polarização parece inverter essa lógica. Votei nele, então aprovo o que ele faz.

Sob a polarização, qualquer governante tem um teto mais baixo de taxa de aprovação, porque o máximo que eles podem alcançar é a aprovação dos eleitores que não têm fortes sentimentos negativos contra eles. É um fenômeno mundial. Se isso é verdade, o presidente Lula chegar a 60% de aprovação é ele obter o máximo do que ele poderia obter. Pensando em uma eleição polarizada, tudo vai depender de uma minoria de eleitores que são indecisos.

A sra. acha que Lula tem certo favoritismo por estar na máquina ou essa ideia também é questionável?

Um presidente sempre tem a vantagem do controle da máquina. Tanto é verdade que Bolsonaro quase ganhou a eleição, apesar de ter sido um péssimo governante. Isso é verdade para o Brasil, para o mundo, é verdade para a eleição federal, estadual, municipal, para qualquer eleição.

Então pode ser favorito.

Isso a gente não sabe. Tem muito chão pela frente. Se essa conversa fosse em janeiro, os principais analistas estavam dizendo que o presidente Lula estava morto. O Eduardo Bolsonaro, o Sóstenes Cavalcante e o Trump fizeram a cortesia de reviver o Lula, mas muita coisa pode acontecer.

Como a sra. vê o papel do bolsonarismo na eleição, com Bolsonaro condenado e possivelmente preso?

O cenário de que ele esteja preso é provável, mas ainda temos um ano pela frente. Se o ex-presidente Bolsonaro for de fato preso, é pouco provável que ele atue diretamente na eleição. Mas isso não quer dizer que o bolsonarismo vai desaparecer e quer dizer menos ainda que os bolsonaristas não vão usar a condenação do Bolsonaro, um presidente que tem problemas graves de saúde, como um custo político da eleição.

O comportamento dos potenciais candidatos da direita mostra que todos estão lutando para preservar uma conexão com essa parte do eleitorado. Isso quer dizer que esse movimento está longe de ser descartável do ponto de vista da eleição.

A teoria política também tem mostrado que a democracia ganha força e aprovação à medida que distribui renda, ou seja, quando há parcelas maiores da sociedade melhorando de vida. Qual a relação entre a alta polarização, a insatisfação com a política e esses sinais recentes de distribuição de renda? O que isso diz sobre a erosão democrática?

A gente não sabe muito bem se a democracia erode quando há um candidato de extrema direita, quando ele ganha a eleição ou quando ele toma medidas extralegais. Parece incontroverso que há um descontentamento com a desigualdade nos países desenvolvidos e que está associado com a queda do bem-estar e com o crescimento da extrema direita. Isso, porém, não é exatamente verdadeiro para o Brasil.

No Brasil, a extrema direita cresceu quando a desigualdade caiu. O que as pesquisas estão dizendo é que o que alimenta esse grupo no Brasil são muito mais as guerras culturais que a questão econômica.

Para além disso, ao longo do período democrático, o Brasil construiu um conjunto de políticas sociais que realmente reduzem a desigualdade, como o BPC, o SUS, o Bolsa Família, que tem apoio de vários partidos no Parlamento. Muitas delas passam por votação unânime. Em um país com o tamanho da pobreza que o Brasil tem, nem a direita vota contra políticas sociais.

Qual a perspectiva para o próximo presidente eleito diante dessa polarização?

Em um cenário de Lula 4, certamente haverá como desafios a polarização, a necessidade de montar uma coalizão que lhe dê apoio, que, se tudo for mantido constante, tende a ser instável, e o agravamento do problema fiscal. É provável que ele enfrente problemas muito semelhantes ao Lula 3, talvez com uma intensidade maior.

Um bolsonarista não teria vida mais fácil, porque se derem um indulto ao ex-presidente Bolsonaro, caso ele ainda esteja preso, isso certamente vai gerar uma crise na opinião pública, com a imprensa, com o Supremo. O problema fiscal também estaria presente, ele não vai desaparecer porque trocou de presidente, assim como os problemas da relação com um Congresso pouco disposto a fazer ajuste das contas públicas. Isso vai levar os problemas ao Supremo, que seguirá decidindo e produzindo perdedores, que se revoltarão.

Enquanto a gente não resolver essa equação política e cultural, não adianta apenas trocar de presidente. Essa é uma ilusão que está sendo vendida.

Marta Arretche, 67

Professora titular do Departamento de Ciência Política da USP e pesquisadora do Centro de Estudos da Metrópole. Mestre em ciência política e doutora em ciências sociais pela Unicamp, realizou pós-doutorado no MIT, nos EUA. Autora, entre outros livros, de “Trajetórias das Desigualdades: Como o Brasil Mudou nos Últimos 50 Anos”.

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