Como autor do livro “Ciência, Use com Cuidado” (Unicamp, 2008), este colunista jamais recomendará fé cega na tecnociência. No máximo uma admiração crítica, baseada na compreensão tão profunda quanto possível de seu funcionamento e suas limitações.

Já instrumentalizar o autismo para tentar destruir essa confiança, condicional que seja, é de uma calhordice sem par. Assim agem Donald Trump, Robert Kennedy Jr., seu secretário (ministro) da Saúde, e Martin Makary, diretor da agência reguladora de fármacos FDA.

Não contentes em propagar a noção fraudulenta de que vacinas provocam autismo, indiciaram há uma semana também o acetaminofeno como causa (não será citado aqui o nome comercial do analgésico para não espalhar ainda mais o disparate).

Hélio Schwartsman relacionou o caso com a fosfoetalonamina, inócua “pílula do câncer” que até fomento do Legislativo e do Executivo recebeu e só terminou abortada no Judiciário. Nem as supostas causas do autismo nem a alegada cura de tumores contam com evidência científica para justificar adoção oficial.

Trump, Kennedy e Makary não estão nem aí, como diz um governador subserviente ao bolsonarismo, que matou uns 100 mil brasileiros por Covid promovendo ivermectina na pandemia. Faltou dizer que o trio cascavel não só inventou um bode expiatório (acetaminofeno) como já tem candidato a fosfo/ivermectina como panaceia para autismo: leucovorina.

Trata-se de uma substância aparentada com a vitamina B9 (ácido fólico, folato) usada para ajudar pacientes submetidos a quimioterapia. Um remédio valioso, que não merecia ser arrastado para essa mixórdia de opiniões e lendas travestidas de soluções para o que se vende como “crise de autismo”.

Na entrevista coletiva, além de apontar o dedo ao analgésico, a cúpula da saúde no governo norte-americano insinuou que a leucovorina seria autorizada pela FDA como tratamento promissor para autismo. Mas não é bem isso: quando muito poderá mudar o rótulo do medicamento para incluir um uso muito específico.

Existe uma síndrome genética rara chamada deficiência cerebral de folato, que acomete uma em cada milhão de crianças. Seu desenvolvimento começa normal até que, entre 5 meses e 2 anos, aparecem sintomas de atraso motor e na fala que podem se assemelhar ao autismo. Concluir daí que crianças do espectro possam e devam ser tratadas com leucovorina é um salto sem a menor justificativa.

Parte da turma antivaxxer dos EUA ficou revoltada com a manobra diversionista de Trump e Kennedy. Eles prefeririam que a dupla continuasse priorizando vacinas como suspeitas, invencionice igualmente sem pé ne cabeça, porém mais apta a sustentar hipóteses de conspiração —com consequências graves para a saúde pública— do que abandonar um analgésico ou promover vitaminas.

Torçamos todos para que o gado brasileiro, se mais uma vez seguir o rebanho do Norte, também termine encurralado nesse brete negacionista. Como está complicado frear a erosão da confiança na ciência pelas redes antissociais, que ao menos vicejem dúvidas confusionistas também nas paragens onde a paranoia substitui as evidências.

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