O primeiro dever dos ministros do STF (Supremo Tribunal Federal) é “preservar a coesão interna, a confiança recíproca e o respeito mútuo que sustentam a legitimidade do tribunal”, porque “nenhum poder sobrevive à desunião de seus integrantes”.

O recado é do ministro aposentado e ex-presidente do STF Celso de Mello, que completa 80 anos neste sábado (1º).

Em entrevista à Folha por escrito, Celso defende a atuação da corte no julgamento da trama golpista, que condenou o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).

Também afirma que a insatisfação de segmentos da opinião pública não compromete a legitimidade das decisões judiciais e ressalta a importância de união dentro do STF, que nos últimos meses esteve envolvido em embates e troca de farpas e teve a maioria de seus integrantes alvos do governo de Donald Trump (EUA).

Natural de Tatuí, interior de São Paulo, Celso foi indicado pelo então presidente José Sarney em agosto de 1989, ano do centenário da Proclamação de República, e se tornou o ministro com mais tempo no tribunal desde a redemocratização. Deixou a corte em outubro de 2020, após 31 anos, um mês e 26 dias.

Suas três décadas no STF ficaram marcadas por relatorias e votos emblemáticos em casos como os da criminalização da homofobia, do aval à interrupção da gravidez de fetos anencéfalos e da liberação da Marcha da Maconha.

Menos ruidosas, outras decisões do ministro tiveram impactos jurídicos importantes. Uma delas, de 2004, foi a fixação das regras para aplicação do princípio da insignificância (ou bagatela), que inocenta réus pelo furto de bens com valores diminutos, como de pequenas quantidades de comida.

O sr. foi um dos primeiros ministros indicados ao STF após a Constituição de 1988. Ao longo dessas décadas, avalia que o Supremo vem cumprindo seu papel constitucional? Como?

É importante assinalar, na perspectiva de nossa experiência institucional, que o Supremo —a despeito de episódios de grave tensão havidos em sua trajetória, como aqueles que o colocaram em conflito com alguns presidentes, como Floriano Peixoto, Hermes da Fonseca, Costa e Silva e Jair Bolsonaro— soube superar as adversidades impostas pela história, resistir à pressão das circunstâncias, preservar sua dignidade institucional e manter a integridade de sua missão constitucional.

Essa permanência de fidelidade ao regime das liberdades públicas e ao império da Constituição demonstra que o Supremo —mesmo submetido a gravíssimas situações de agressão institucional e exposto a tempos procelosos— logrou manter incólume o patrimônio moral que legitima a sua existência e que constitui o fundamento de sua autoridade. Assim, posso afirmar, com a sobriedade que o tempo ensina, que o Supremo tem procurado cumprir, com dignidade e rigor, o papel que a Constituição de 1988 lhe confiou.

Qual deve ser a postura do Supremo ante os ataques de potências estrangeiras?

Diante de potências estrangeiras, o Supremo não se curva: sustenta, com dignidade, a soberania da Constituição e das leis da República. O STF, como guardião da Constituição e expressão maior do Judiciário, deve sempre conservar sua independência, mesmo (e sobretudo) quando a nação é objeto de pressões, de ameaças ou de ataques vindos de potências estrangeiras.

A soberania nacional não é mera cláusula retórica do texto constitucional. […] Quando potências estrangeiras, movidas por interesses geopolíticos, econômicos ou informacionais, buscam influir, direta ou indiretamente, nos destinos do Estado brasileiro, cumpre ao Supremo reafirmar —com firmeza— que a jurisdição constitucional não se curva à vontade dos fortes, mas apenas à autoridade da Constituição.

Minha resposta, portanto, repudia a submissão e se apoia na resistência constitucional —a defesa intransigente da soberania inalienável do Estado brasileiro, da dignidade do povo de nosso país e da independência de suas instituições democráticas. Esse é o dever inderrogável do Supremo em tempos difíceis: permanecer fiel à Constituição, fiel à República, fiel ao regime democrático e fiel ao Brasil.

Como uma corte deve lidar com o desgaste interno que esses ataques podem causar?

O primeiro dever de seus membros é preservar a coesão interna, a confiança recíproca e o respeito mútuo que sustentam a legitimidade do tribunal. Nenhum poder sobrevive à desunião de seus integrantes.

O desgaste provocado por tais investidas externas deve ser enfrentado com serenidade, sem permitir que a agressão se converta em divisão. O Supremo —assim como qualquer corte constitucional— não se defende com palavras de revanche, mas com a firmeza de suas decisões e com a fidelidade à Constituição.

É precisamente nos momentos de tensão institucional que o espírito de colegialidade deve prevalecer sobre as divergências pessoais. As diferenças de opinião —naturais e até necessárias em uma corte plural — não podem causar fraturas internas que comprometam a sua autoridade moral. O inimigo externo jamais pode transformar-se em discórdia interna.

Ataques estrangeiros, por mais ruidosos que sejam, não ameaçam uma corte constitucional tanto quanto o enfraquecimento da confiança entre seus próprios juízes. […] O colapso começa quando se rompe o vínculo de confiança, quando a divergência interna culmina em desunião. Assim, a unidade moral de uma instituição é a primeira linha de defesa contra a desagregação interna e o consequente colapso final.

O sr. foi um dos primeiros na corte a falar da pressão da imprensa contra os ministros em casos de grande repercussão, como no mensalão. O cenário se mantém ou é diferente?

É inegável que, em julgamentos de grande repercussão, a imprensa, no legítimo exercício de seu poder-dever de informar, de opinar e de criticar, acaba por exercer uma forma de pressão midiática sobre os magistrados. Essa é uma realidade inerente às democracias abertas.

O que se impõe ao juiz, em tais circunstâncias, é a serenidade e a independência de espírito: julgar com fidelidade à Constituição e às leis, sem se deixar influenciar por aclamações populares ou por campanhas midiáticas. Afinal, a Justiça não pode ser refém da opinião pública, mas também não deve temê-la —deve apenas se manter fiel ao seu dever de julgar com isenção.

Enfatizei, em inúmeras decisões, que o exercício da jurisdição não pode converter-se em prática judicial inibitória, muito menos censória, da liberdade constitucional de expressão e de comunicação, sob pena de esse poder atribuído ao Judiciário qualificar-se como o novo nome de uma inaceitável censura estatal em nosso país.

Essencial reconhecer que a liberdade de imprensa não se reveste de caráter absoluto, mas assegura aos profissionais de comunicação social o direito de buscar, de receber e de transmitir informações e ideias por quaisquer meios. […] Importante relembrar, neste ponto, a correta advertência do ministro Alexandre de Moraes, na sua posse como presidente do TSE (Tribunal Superior Eleitoral).

“A liberdade de expressão não é liberdade de agressão. Liberdade de expressão não é liberdade de destruição da democracia, de destruição das instituições, de destruição da dignidade e da honra alheias. Liberdade de expressão não é liberdade de propagação de discursos de ódio e preconceituosos”, disse.

O sr. concorda com o diagnóstico de que a opinião pública está desgostosa com o Supremo? Se sim, qual é a origem dessa crise?

A eventual insatisfação de segmentos da opinião pública com o STF não diminui a estatura institucional da corte nem compromete a legitimidade de suas decisões. Em uma democracia constitucional, juízes não decidem para agradar —decidem para cumprir a Constituição e para tornar efetivos os seus princípios!

É preciso recordar que, nos momentos mais sombrios da vida nacional, foi precisamente o Supremo quem se ergueu como barreira moral e jurídica contra o negacionismo e o arbítrio do poder. Durante a pandemia, ao afirmar a competência de estados e municípios para adotar medidas sanitárias, salvou vidas e deu concreção ao valor maior da dignidade humana.

É, pois, paradoxal que parte da sociedade manifeste desagrado em face de uma corte que, ao longo desses anos, foi o dique institucional contra o autoritarismo e a barbárie. O Supremo é chamado a agir, ainda que incompreendidas suas decisões, sempre que a Constituição e as liberdades públicas estejam em perigo.

O STF não exerce poder político representativo, como o Executivo ou o Legislativo. Estes derivam sua legitimidade da vontade da maioria, expressa nas urnas. Já o Supremo, como tribunal constitucional, deriva sua legitimidade da própria Constituição —e de sua missão de protegê-la, mesmo contra a maioria, quando esta ameaça ou transgride as liberdades fundamentais ou os direitos das minorias e dos grupos vulneráveis ou o próprio regime democrático.

A essência do Estado de Direito consiste, justamente, em limitar o poder das maiorias, porque a história ensina que as maiorias também podem ser injustas, abusivas e arbitrárias.

O julgamento da tentativa de golpe de Estado que condenou o ex-presidente Jair Bolsonaro foi exemplo recente de uma ação penal de grande repercussão julgada pelo STF. Como avalia a condução do processo?

Quero destacar, antes de mais nada, o significado realmente histórico do julgamento que nossa suprema corte acaba de realizar. Nele, o Supremo reafirmou os valores do Estado democrático de Direito, responsabilizando e julgando culpados os integrantes da cúpula do golpismo, por haverem transgredido, de modo insolente e criminoso, a Constituição e as instituições republicanas.

Com essa condenação criminal, o STF demonstrou que não há espaço, no Brasil, para aventuras golpistas nem para sórdidos projetos autoritários de poder. Ao proferir essa importantíssima decisão, o Supremo, fiel à sua missão institucional, demonstrou à nação que ninguém, absolutamente ninguém, está acima da Constituição ou das leis da República.

Quanto à condução do processo, só posso dizer que o ministro Alexandre de Moraes tem exercido suas funções com observância dos limites constitucionais e legais, agindo como legítimo juiz da causa, e não como parte nela envolvida. A Constituição não permite que a jurisdição se paralise pela simples insurgência dos acusados contra o magistrado que, agindo corretamente, aplica a lei. Importa enfatizar que o Supremo respeitou, no julgamento em questão, o contraditório e a ampla defesa.

O que não se admite, em um Estado de Direito, é confundir a ampla defesa com a liberdade de instaurar incidentes para obstruir a jurisdição. […] A punição de crimes contra o Estado democrático de Direito e de organização criminosa armada tem importância capital para a preservação da ordem constitucional e da própria sobrevivência da democracia. Esses delitos não são simples infrações penais —representam ataques diretos ao pacto fundante da convivência republicana e democrática.


RAIO-X | Celso de Mello, 80

José Celso de Mello Filho é natural de Tatuí (SP). Formou-se em direito pela Faculdade de Direito da USP em 1969. No ano seguinte, ingressou no MP-SP (Ministério Púbico do Estado de São Paulo). Deixou o órgão após sua indicação ao STF, em 1989, pelo então presidente José Sarney, de quem foi secretário-geral da Consultoria-Geral da República. Aposentou-se em outubro de 2020, após mais de três décadas no Supremo. Sua vaga foi ocupada pelo ministro Kassio Nunes Marques, indicado por Jair Bolsonaro.

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