Oliver Sacks (1933-2015) foi reconhecido pelos retratos detalhados e mais romanceados de seus pacientes. Mas uma reportagem da revista The New Yorker aponta que as narrativas do neurologista sobre seus estudos de caso parecem ter extrapolado mais a realidade do que se imaginava, com invenções e com o britânico se colocando dentro das histórias dos pacientes retratados.
O texto foi publicado na edição impressa de 15 de dezembro. A americana The New Yorker diz ter tido acesso a correspondências e diários de Sacks por meio da Fundação Oliver Sacks. Muitos desses registros eram inéditos.
Duas obras citadas na reportagem da revista —”O Homem que Confundiu Sua Mulher com um Chapéu” e “Tempo de Despertar”— saíram no Brasil pela Companhia das Letras, que, procurada, afirmou que não iria se pronunciar sobre o caso.
Nos documentos acessados pela reportagem, há passagens em que o neurologista —que escrevia costumeiramente em diários— mostrava certa culpa por, segundo ele mesmo, “falsificações”.
Após seu livro “O Homem que Confundiu Sua Mulher com um Chapéu” se tornar um best-seller e chegar a ser, inclusive, adotado por faculdades de medicina, Sacks escreveu em um diário: “A culpa tem sido muito maior desde ‘Hat’ [parte do título do livro, em inglês], por causa de (entre outras coisas) minhas mentiras, falsificação”.
A reportagem da revista aponta que, nos diários, Sacks havia escrito que “‘uma sensação de criminalidade hedionda permanece (psicologicamente) associada” a sua obra. O texto diz que o autor reconhecia que alguns detalhes eram “puras fabricações”. Ao mesmo tempo, ele tentava contemporizar o que estava fazendo.
“O impulso é ao mesmo tempo mais ‘puro’ —e mais profundo”, escreveu em seus diários. “Não é apenas ou inteiramente uma projeção —nem (como às vezes, de maneira engenhosamente dissimulada, sustentei) uma mera ‘sensibilização’ daquilo que conheço tão bem em mim mesmo. Mas, se quiserem, uma espécie de autobiografia.”
Em outro trecho de um diário, ele diz ter “errado nesse aspecto, muitas e muitas vezes, em ‘Tempo de Despertar’”, algo que era uma “fonte de severa e duradoura autocrítica”.
“Tenho algumas confissões difíceis a fazer —se não em público, ao menos para Shengold [Leonard Shengold, psiquiatra que o acompanhava]— e para mim mesmo’, escreveu Sacks em um diário datado de 1985 e momento no qual o autor já tinha diversos livros publicados e grande prestígio.
Segundo a reportagem da revista The New Yorker, no prefácio de “Tempo de Despertar”, o autor diz ter mudado detalhes circunstanciais com o objetivo de proteção da privacidade dos pacientes, mas que o “importante e essencial —a presença real e plena dos próprios pacientes’— foi preservado”.
Em uma correspondência a um de seus irmãos, Sacks enviou um exemplar de “O Homem que Confundiu Sua Mulher com um Chapéu” e chamou a obra de um livro de “contos de fadas” e escreveu que “essas narrativas estranhas —meio relato, meio imaginação, meio ciência, meio fábula, mas com uma fidelidade própria— são, basicamente, o que faço para manter afastados os MEUS demônios do tédio, da solidão e do desespero”.
A reportagem menciona um caso, gravado por Sacks, em que o neurologista tem o seguinte diálogo com uma mulher cuja avó acabara de morrer.
“Vou lhe dizer o que você está dizendo”, disse Sacks. “Você quer descer lá para baixo e se juntar aos seus avós mortos, no reino da morte.”
Em outra sessão gravada ele continua: “Eu sei que, de certa forma, você não sente vontade de viver. Parte de nós se sente morta por dentro, eu sei, eu sei disso… Sente-se que se quer morrer, que se quer acabar com tudo, e qual é o sentido de continuar?”.
A mulher responde que não queria dizer isso daquela forma.
“Eu sei, mas você quer, em parte”, diz Sacks. “Eu sei que você foi solitária a vida inteira.”
Apesar de demonstrar muita empatia nas histórias que contava sobre seus pacientes, Sacks tinha dificuldades de relacionamento em sua vida pessoal. Ele se descreveu como celibatário contumaz e sofreu rejeição de sua família por ser homossexual.
A história da mulher em questão é contada na obra “O Homem que Confundiu Sua Mulher com um Chapéu” no capítulo com nome “Rebecca”. No texto, a mulher que aparece transformada pelo luto pela avó morta, ao fim, torna-se mais decidida e se junta a um grupo de teatro, “uma pessoa completa, equilibrada, fluente”, uma “poeta natural”.
As transcrições das conversas do autor com sua paciente e os diários preservados mostram uma realidade distante desse final poético. A mulher, segundo os registros, não entra para um grupo de teatro e não sai da situação de desespero. Ela chega a falar que “era melhor eu não ter nascido”, que era “inútil”, “não sirvo para nada”. Sacks, enquanto isso, tenta a convencer de que essa não é verdade.
A reportagem da revista The New Yorker fala que, “em vez de testemunhar a realidade dela, ele a remodela para que ela também desperte”.
Por fim, o próprio Sacks escreve, em um diário, que o “exemplo mais flagrante” desse tipo de distorções estava no capítulo “Os Gêmeos”, também parte da obra “O Homem que Confundiu Sua Mulher com um Chapéu”.
No livro, ele conta a história de gêmeos com autismo que ficam recitando números. O autor teria, em um certo momento de contato com eles, percebido que se tratava de números primos.
A reportagem da revista aponta que na infância o britânico ficava horas sozinho em busca de uma fórmula para os números primos, mas “nunca encontrei nenhuma Lei ou Padrão para eles”.
De toda forma, Sacks teria levado aos gêmeos um livro sobre o tema —que ele teria amado quando era criança— e teria oferecido aos dois um número primo. Os irmãos teriam, então, continuado a falar números primos até chegarem aos que tinham 20 dígitos.
A questão é que antes do contato de Sacks com os gêmeos, a dupla já havia sido estudada por causa de sua habilidade em determinar o dia da semana que correspondia a datas que lhes eram dadas. Nos estudos publicados sobre os irmãos, nada constava sobre a questão dos números primos. Em uma correspondência sobre os gêmeos entre Sacks e outro especialista, o autor também não mencionou qualquer habilidade matemática excepcional.
Nos anos 2000, um psicólogo publicou um estudo que contestava a história de Sacks sobre os gêmeos com dom para gerar grandes números primos, conta a reportagem da revista The New Yorker. O psicólogo teria entrado em contato com Sacks para perguntar qual era o título do livro de infância sobre números primos ao qual ele se referia, pois ele não conseguia achar livros com a descrição dada pelo autor. O britânico teria dito que o exemplar havia se perdido.