Quando Elon Musk decidiu construir uma nave espacial reutilizável para realizar seus sonhos de colonização marciana, os engenheiros da SpaceX sabiam que precisariam de um motor especial para o foguete mais poderoso do mundo.
Starship, como o veículo foi batizado, exigia o que é conhecido como um motor de combustão em estágios de fluxo completo. Extrair até a última gota de potência do combustível de foguete requer uma máquina que possa controlar precisamente uma explosão repetidas vezes —falhar nessa missão significa recolher seus pedaços do oceano. O design é tão complexo que nunca havia sido usado: os soviéticos construíram um e o testaram em terra nos anos 1960, mas nunca o enviaram ao espaço.
Musk contratou Jeff Thornburg, um engenheiro aeroespacial veterano, para liderar o desenvolvimento do motor.
No início de sua carreira, Thornburg havia participado em um projeto do governo americano chamado Integrated Powerhead Demonstrator (IPD). Nele, engenheiros da Nasa e da Força Aérea trabalharam com contratados para construir e demonstrar o hardware para um motor de foguete de combustão em estágios de fluxo completo.
Em 2012, quando a SpaceX começou a construir sua própria versão desse motor, Thornburg e seus engenheiros dirigiram até um depósito governamental no deserto da Califórnia e trouxeram de volta uma caminhonete cheia de equipamentos experimentais remanescentes do projeto.
A SpaceX ainda tinha muito trabalho a fazer: transformar qualquer demonstração de tecnologia em algo confiável o suficiente para operações requer testes extensivos e ajustes.
O Raptor, como a empresa de Musk chama o motor, usa um tipo diferente de combustível em comparação ao projeto IPD, o que exigiu novos designs e experimentos. Em 2019, a SpaceX tornou-se a primeira organização no mundo a voar com esse tipo de motor.
Quando o Starship e seu propulsor Super Heavy decolaram no dia 13 deste mês, foi um testemunho da expertise da SpaceX, mas também do sistema americano de inovação público-privada que atualmente enfrenta seu maior teste de estresse em anos.
“O Raptor não teria a aparência que tem sem o programa IPD”, diz Thornburg. “O IPD não apenas abriu caminho para muitas coisas que estão acontecendo com o Raptor e outros motores, o mesmo processo aconteceu para tornar a SpaceX bem-sucedida com o Falcon 9 e o Merlin.”
De fato, os motores Merlin que impulsionam o Falcon 9 da SpaceX —o veículo de lançamento reutilizável que preparou o terreno para tantos dos sucessos da empresa— também começaram como um projeto da Nasa, chamado Fastrac.
E a revolucionária capacidade da SpaceX de pousar seu foguete verticalmente foi inspirada em um projeto diferente da Nasa e da Força Aérea, chamado Delta Clipper, dos anos 1990.
Construir a partir dessas descobertas tornou possível para o propulsor Falcon 9 da SpaceX voar repetidamente, reduzindo custos e permitindo que a empresa de Musk lançasse sua lucrativa rede de satélites Starlink.
Enquanto os técnicos da SpaceX preparavam o Starship para seu lançamento mais recente, notícias de uma nova onda de demissões na Nasa começaram a surgir.
O governo Trump, que propôs cortes drásticos na principal agência espacial do mundo, agora planeja eliminar mais cargos, mesmo depois da saída de quase 4.000 funcionários, mais de um quinto de sua força de trabalho, neste ano.
Com poucos especialistas espaciais na Casa Branca, a visão da administração para a Nasa prioriza missões humanas à Lua e a Marte, conduzidas por empresas contratadas, e reduz o financiamento para desenvolvimento tecnológico, ciência climática e exploração robótica.
Os sucessos da SpaceX, e sua aparente vantagem sobre a Nasa na construção de foguetes e naves espaciais, alimentaram o debate sobre o papel do governo e do setor privado na criação de novas tecnologias.
A ideia de que empresas privadas estão mais bem posicionadas para esse trabalho faz parte do argumento de Trump para promover cortes na Nasa, na Fundação Nacional de Ciências (NSF, na sigla em inglês) e nos Institutos Nacionais de Saúde (NIH).
Os orçamentos reduzidos estão acelerando uma tendência: programas da Nasa para desenvolver robôs móveis no espaço, transferir combustíveis no espaço e construir motores de foguetes nucleares foram todos deixados de lado enquanto empresas espaciais privadas avançam.
Mas, enquanto a terceirização de tecnologia pública para engenheiros do setor privado (e seu capital) provou ser uma maneira eficaz de resolver problemas difíceis de engenharia, o foco em produtos finais espetaculares pode obscurecer a cadeia de investimentos por trás deles.
Os governos não apenas fornecem financiamento e criam demanda para empresas de tecnologia, mas também fornecem esforço em pesquisa e desenvolvimento.
Akhil Rao, um ex-economista da Nasa que cofundou a empresa de pesquisa e consultoria Rational Futures, destaca que se estima que a atuação em pesquisa e desenvolvimento governamental não relacionada à defesa na Nasa, NIH, Departamento de Energia e outros represente cerca de um quinto do crescimento da produtividade do setor empresarial dos Estados Unidos no pós-Segunda Guerra Mundial. Políticas que ignoram essas contribuições podem deixar os fundadores da próxima startup de tecnologia americana sem sementes para plantar.
O professor de sociologia Fred Block, da Universidade da Califórnia em Davis, argumenta que, apesar das reclamações sobre a dominância do neoliberalismo, os EUA ainda têm um estado de desenvolvimento “oculto” que aproveita o poder governamental para estabelecer as bases para o sucesso comercial. As mesmas forças que levaram o Departamento de Defesa a lançar as bases para a internet agora se aplicam a tecnologias como vacinas de mRNA e carros elétricos.
“O sucesso da Tesla não surgiu do gênio de Elon Musk”, afirmou Block. “Surgiu do fato de que houve de 20 a 30 anos de investimento federal no desenvolvimento de veículos elétricos.”
A SpaceX é um estudo de caso nesse relacionamento. A empresa dependeu da Nasa e do Pentágono não apenas para financiar o desenvolvimento de sua tecnologia e comprar os produtos finalizados, mas para fornecer conhecimento técnico por meio de programas como IPD, Fastrac e Delta Clipper.
O problema é que esses programas foram cancelados —vítimas de mudanças de prioridades, cortes de custos e acidentes experimentais— como muitos projetos tecnológicos públicos promissores (e nem tão promissores). Em um relatório no ano passado, Norm Augustine, ex-CEO da Lockheed Martin, alertou que a Nasa não estava investindo o suficiente em tecnologia fundamental e que seus engenheiros poderiam perder o conhecimento necessário para entender o hardware que estão comprando do setor privado.
Thornburg e outras centenas de engenheiros saíram do governo para trabalhar em empresas como a SpaceX porque era a melhor chance deles de realmente construir algo que vai para o espaço. Agora, os planos espaciais americanos podem estar oscilando demais nessa direção.
“Estou um pouco preocupado porque o governo meio que perdeu seu rumo”, diz Thornburg, hoje CEO da startup Portal Space Systems, que está desenvolvendo espaçonaves altamente manobráveis. “A Nasa e a Força Aérea tentam obter financiamento para coisas como essa e recebem uma resposta no Capitólio: ‘Se a SpaceX vai fazer isso, por que precisamos financiar vocês?’. Há uma educação que precisa acontecer, um impulso na pesquisa e desenvolvimento focado no governo.”
Avanços fundamentais
Com o Starship, a SpaceX está tentando subir de nível mais uma vez, criando não apenas um propulsor de foguete, mas uma nave espacial que pode retornar do espaço e voar novamente com facilidade. Para isso, ela deve ser capaz de suportar temperaturas de 1.427°C ao mergulhar de volta na atmosfera terrestre. Esse não é um desafio pequeno: os ladrilhos cerâmicos usados para isolar a estrutura metálica do veículo de um manto de plasma superaquecido são frágeis e difíceis de manter no lugar.
O ônibus espacial da Nasa enfrentou o mesmo problema e o resolveu com um processo de recondicionamento que incluía mais de um milhão de procedimentos. Os engenheiros da agência acabaram por aposentar o veículo em grande parte devido à incerteza em torno dos delicados sistemas de proteção térmica, que falharam durante a tragédia da Columbia em 2003, resultando na morte de sete astronautas.
Assim como o ônibus espacial, o Starship foi projetado para ser reutilizável, mas a SpaceX quer prepará-lo para reutilização ainda mais rapidamente. A Nasa está pagando à empresa quase US$ 3 bilhões para desenvolver o Starship como um módulo de pouso lunar, por exemplo, o que exigiria mais de uma dúzia de reabastecimentos em órbita (uma técnica que a SpaceX ainda não demonstrou).
Os custos desse esforço se justificam se os Starships puderem ser recondicionados rapidamente para seu próximo voo — engenheiros da SpaceX dizem que seu objetivo é “horas, não dias”. Mas, se isso levar semanas ou mais, chegar à Lua pode ser mais caro do que a SpaceX e a Nasa esperam.
Agora, a Nasa está preocupada que o Starship esteja anos atrasado em relação ao pouso lunar planejado para 2027, o que pode significar que a China levará humanos para lá antes que os americanos retornem.
No último dia 20, o administrador interino da Nasa, Sean Duffy, disse que abriria o contrato do módulo de pouso para outros concorrentes, incluindo a Blue Origin de Jeff Bezos. Essa notícia fez Musk reclamar de “Sean Dummy” em sua rede social X.
Chris Combs, professor associado da Universidade do Texas em San Antonio que estuda aerodinâmica de alta velocidade, afirmou que não está claro se a SpaceX resolveu o problema de reentrada o suficiente para reutilizar suas naves espaciais tão rapidamente quanto a empresa espera —uma área de pesquisa “que cronicamente subfinanciamos”.
“A SpaceX não está no ramo de fazer avanços científicos fundamentais”, disse Combs. “Estamos chegando a um ponto em que eles precisam se perguntar se há algum avanço na ciência de materiais que ainda não está disponível agora. E vocês querem mudar de direção e realmente fazer a pesquisa básica? Ou precisam esperar 20 anos para que alguém encontre essa resposta?”
A SpaceX está confiante de que pode resolver o problema do escudo térmico por conta própria. “Essa é uma área onde estamos inventando coisas”, disse o engenheiro sênior da SpaceX e ex-executivo da Nasa Bill Gerstenmaier, durante o Simpósio de Tecnologia Espacial Glenn em setembro, citando uma nova técnica.
O último teste de voo sugere que a empresa está fazendo progressos: o veículo não sofreu tantos danos óbvios como em voos anteriores. Mas Gerstenmaier também disse que a SpaceX está construindo uma fábrica para produzir 30 mil peças para o escudo térmico por dia, o suficiente para uma nave inteira. Um feito de fabricação impressionante, isso sugere que a empresa pode precisar reconstruir todo o escudo térmico do Starship após cada pouso —dificilmente algo compatível com reutilização rápida.
Compartilhando tecnologia
O impacto dos cortes dos EUA no desenvolvimento tecnológico público dependerá de quanto o setor privado conseguirá preencher o vazio. A ideia de que os modelos de inteligência artificial são uma solução rápida para esse problema é exagerada —um artigo científico amplamente citado para apoiar essa ideia foi retratado pelo MIT— e a própria suposição interpreta mal a natureza do vazio. O que está em risco não é apenas a inovação, mas o interesse pelo intercâmbio aberto.
John Scott, professor emérito do Dartmouth College que estuda políticas de inovação, afirmou que o desafio será replicar estruturas existentes que reúnem pesquisadores públicos e privados. O governo pode disseminar os resultados de seu trabalho para muitas organizações, algo que as pesquisas sugerem que o setor privado não fará. As bolsas de pesquisa em inovação para pequenas empresas, por exemplo, produzem mais patentes do que empresas apoiadas por capital privado.
“Esse tipo de informação técnica abertamente disponível pode ser especialmente valioso para a inovação e o crescimento econômico em domínios com tecnologias arriscadas que têm alto potencial de benefícios indiretos além do uso pretendido”, disse Rao, da Rational Futures.
Musk afirmou que quer compartilhar amplamente a propriedade intelectual da SpaceX. Mas, se a empresa resolver o problema do calor na reentrada, ela repassará suas descobertas a concorrentes e clientes gratuitamente? Combs, pelo menos, espera que a Nasa ou a SpaceX divulguem mais dados dos voos para validar modelos de design computacional.
Esse tipo de compartilhamento é valioso porque desenvolver uma nova tecnologia pode exigir várias tentativas ou o modelo de negócios certo antes de realmente decolar. Empresas como Aerojet e Rocketdyne, que participaram do programa IPD original, não fizeram nada com essa tecnologia antes da SpaceX colocá-la em prática. Empresas como Rotary Rocket e Orbital Sciences não conseguiram comercializar o Fastrac antes que ele se tornasse a base do motor Merlin.
Há um reconhecimento na SpaceX de que o compartilhamento de informações é importante. Em seu discurso, Gerstenmaier pediu aos pesquisadores que avancem mais rapidamente e trabalhem em problemas comuns enfrentados pelas empresas espaciais. Mas sua descrição do papel do governo no desenvolvimento tecnológico foi reveladora. “[Na SpaceX,] eu obtenho o que chamo de solução mínima viável —não entendo realmente por que funciona, mas de alguma forma funciona”, disse ele. “Vamos usá-la, vamos monetizá-la, vamos fazê-la funcionar. Vocês têm a chance de me ajudar a entender por que funciona.”
Historicamente, não está claro se é assim que a inovação flui. Os EUA estão entrando em um experimento da vida real com esse modelo, já que a Nasa corta financiamento para tudo, desde bolsas de pesquisa para pequenas empresas até pesquisas de aeronaves de próxima geração. O que isso significa para a próxima equipe de engenheiros que deseja transformar um projeto tecnológico governamental em um unicórnio apoiado por capital de risco dependerá de muitos fatores —incluindo se o Congresso rejeitará o orçamento de austeridade científica de Donald Trump.
Exploradores espaciais testarão essa mudança de abordagem. Cientistas dizem acreditar, por exemplo, que o verdadeiro caminho para Marte exigirá energia nuclear para espaçonaves e exploração de superfície. Bhavya Lal, ex-chefe dos programas científicos da Nasa que defende a ideia, argumentou em um relatório recente que isso exigirá um esforço no nível do Projeto Manhattan que una a expertise do Departamento de Energia e da Nasa com fabricantes de reatores do setor privado.
A Nasa está adotando uma abordagem diferente: encomendando um esforço privado para levar reatores à Lua com pouco apoio do governo. Lal alerta que, sem a estrutura e os recursos corretos, a agência corre o risco de exigir demais do setor privado. Os EUA poderiam mais uma vez gastar centenas de milhões de dólares —públicos e privados— e acabar não avançando mais do que a última geração de programas ambiciosos que nunca voaram.
O desafio, afirmou Lal, ainda é combinar a ciência governamental com o zelo empreendedor.
“Há uma grande necessidade de amadurecimento tecnológico em paralelo com o financiamento de um programa de voo”, disse ela sobre a tecnologia nuclear no espaço. “Mas um esforço de amadurecimento tecnológico sem fim, sem um prazo ou um programa de voo paralelo, é apenas um programa de empregos.”